(A linha de um contrabaixo.)
Os passos que dou ecoam apressados nas ruas sujas, sobrepondo-se ao som da água nas sarjetas. Tenho de fazer a barba.
(O ressoar das peles de uma bateria.)
Mais que eu, a minha pulsação parece ansiosa por um cigarro. E um bom digestivo. Aquele jantar, se é que se lhe pode chamar alguma coisa, estava pesadíssimo.
(Dedos rápidos martelam um piano.)
A luz de um néon foleiro reflectida nas gotas de chuva miúda anuncia o meu restaurante favorito das redondezas. Por acaso, o mais velho, mas sinto-me em casa, tem música ao vivo.
(Os espasmos da surdina de um trompete)
Presa nas calças, a minha 30.6 espeta-me as costas a cada passo. Um pequeno incómodo que me dá segurança.
(Ouve-se ao longe um dissonante órgão poeirento.)
O circo trouxe as aberrações à cidade. Nunca gostei de palhaços, dão-me arrepios.
(O rasgo de um trombone)
Um Corvette passa a roncar e deixa uma fumarada para trás. Era aquele tipo que toca no bar já há duas semanas. Chama-se Frank ou Tom, um desses nomes. Gosta de estacionar mesmo à entrada. Deve ter achado piada dos ares de Birmingham.
(Um saxofone suspira uma escala qualquer)
Uma miúda de sapatos vermelhos e carteira de pele de crocodilo falsa está a porta a fumar um fino cigarro. Não tem mais de 21. Nunca a vi por aqui, deve estar de passagem como quase todos os que aqui vêm.
Ela ajeita o cabelo e eu entro.
O cheiro das conversas de café e o ar fumarento bafejam-me a cara, seguidos do familiar ranger da porta e o som de uma campainha. Típico restaurante à beira de uma estrada que dá para nenhum lado.
Ponho uns trocos pequenos na velha jukebox, sento-me junto à janela, o mais perto possível do bar, e peço o habitual.
Sobe uma figura com presença e olhar sério ao minúsculo estrado que serve de palco. Sempre era Frank, ou Tom, ou um desses nomes. A voz dele, forte e a oscilar entre o doce de um whisky velho e o roufenho de tabaco barato, pede um cinzeiro e uma garrafa, senta-se ao piano, e começa a tocar. Com o ar com que o faz, parece que escreve as músicas ali, no momento, e sai sempre da sala com uma mão-cheia de canções.
Deixo que a minha cabeça se distraia lentamente ao som da música e perco-me, a observar atentamente aquela personagem tirada dum mundo paralelo, não deste, tão parecido com o aquele a que gostava de pertencer. Cada música, cada cara, e cada letra, cada história cheia de pormenores…
(Um saxofone suspira a mesma escala)
Já fora da espelunca, ajeito a velha t-shirt branca dos Ramones, povoada de nódoas, por baixo do casaco.
A campainha toca, a porta range, e o fumo das conversas sai acompanhado de Tom, ou Frank, não sei bem, que guarda o escasso ganho da noite no bolso roto de trás. Ouve-se um estalido metálico e ele acende mais um cigarro com o seu isqueiro prateado.
Entra no Corvette e dá a volta à chave.
Dou um leve olhar à miúda dos sapatos vermelhos.
A voz rouca pergunta-me se quero boleia.
Ela ajeita o cabelo e eu entro.
Texto por Sgt.Pepper(Mp3) Tom Waits - I Never Talk to Strangers
(Mp3) Tom Waits - 29.00$
(Mp3) Tom Waits - Invitation to The Blues